terça-feira, 24 de maio de 2016


"A verdadeira felicidade está na própria casa, entre as alegrias da família."
Leon Tolstoi



Família


   “Fecha os olhos!”, dizia-me. “Para quê?”, respondi-lhe naquela tenra voz de recém-chegado a este mundo. “Ouve só o rebentar das ondas. Aprecia em silêncio e aprende a escutar a beleza do mar. Quando fechas os olhos, consegues dar mais valor aos sons.”

   A paixão do meu pai pelo mar foi cultivada em minha alma como um girassol no canto de um jardim. O miúdo de olhos e cabelos castanhos que noutrora aprendeu a amar o mar é hoje o mesmo que se abanca de pernas à chinês na areia ou nas rochas defronte para a natureza em explosão sob a forma de ondas. O meu pai sorri maravilhado com o que se desperta dentro dele quando se contempla com o mar; hoje eu sou o eco desta paixão que não me poderia ter sido transmitida sem a riqueza espiritual de que se abona esta família.

   “Sente o cheiro dos eucaliptos e da terra molhada. Há melhor cheirinho do que este?”

   Tínhamos acabado de chegar a um eucaliptal perto de casa para recolher o musgo que iria enfeitar o presépio. O Natal aproximava-se e com ele aquele conforto pseudoconsciente formado de cheiros, sabores e sensações. A minha mãe sorria feliz: sentia-se na sua zona de conforto, onde as ervas abundam e, em conjunto com as árvores, borrifam no ar fragrâncias doces e selvagens de todos os tipos. E eu, do “alto” do meu metro e meio, aprendia a valorizar o campo, a natureza em estado selvagem e os pormenores que dela podemos extrair.
Quando arranquei um malmequer do chão, disse-me “Para que é que o fizeste? Vais precisar dela para alguma coisa? Se for para oferecer a alguém tudo bem, mas se não precisares dela, mais vale deixá-la onde estava. Podes vê-la onde está e apreciá-la da mesma forma. Se a arrancares, morre para nada.” Mais do que aprender a valorizar a natureza, aprendi a amar sem retirar, a valorizar sem sufocar e a apaixonar-me pelas coisas da vida, mesmo que me sejam distantes.

   Esta é a minha família. Para mim, isto é ser-se família. É transmitir e saber-se receber o conhecimento, os valores e as sensações na singular e subjectiva perspectiva de cada um sem o tão típico esforço de anulação do outro e do que é único na sua personalidade. Esta harmonia familiar resulta de um equilíbrio entre as semelhanças e as diferenças, num enriquecimento recíproco. Promover o bem do outro não é fazer com que se torne semelhante a mim, mas que tão somente ouça, compreenda a minha perspectiva de vida e a respeite por fim, cabendo ao acaso ou ao que quer que seja a possibilidade do outro tomar ou não essa perspectiva também como dele.
   Esta harmonia é, ao contrário do que se possa pensar, fruto de um contínuo esforço de entendimento e respeito. E para quantas pessoas e famílias o preço deste sacrifício e trabalho persistente não lhes vale o esforço? Quantas vezes a solidão e a distância valem como tranquilidade?
   Lamento quem nunca teve uma verdadeira família e desejaria, na consciência da impossibilidade, poder presentear todas estas pessoas com uma como a minha.
   A minha família é o meu mundo, é a minha natureza, as minhas árvores e o meu mar, os cheiros e os pormenores, as sensações e as memórias – encarnados nos meus pais, no meu irmão, nas minhas tias e tios, primos e primas, avô e avós. Longe deles estarei sempre perto porque é em mim que residem.

Afonso Arribança

1 comentário:

andré maia disse...
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