segunda-feira, 27 de abril de 2015


"Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas como verdadeiramente são – como são para os outros. Sinto isto."
Fernando Pessoa


Olho, permanecendo ali por instantes, de frente para um retrato meu de quando tinha 5 anos. Vejo naquele rapaz de olhar negro e misterioso o mesmo olhar de hoje. O pacto entre esse olhar e o mundo, ou entre os sentidos e os perceptos, dá-se em mim por processos cognitivos e emocionais invulgares que sempre me impediram de ver a realidade tal como os outros a vêem. Isso não significa necessariamente que veja a realidade errada, mas sim de uma outra perspectiva. Sempre tive, desde criança, a necessidade de procurar um significado mais rico em tudo o que vivia, vivo e experiencio. Ouvir falar da história de Portugal nas aulas de história não era um enfado, mas todo um misto de sensações que iam desde o espanto, por cada nova história, ao orgulho, enquanto, pelo meio das muitas e confusas palavras do professor, me colocava no meio da grandiosidade do império português, assistindo mentalmente a um brilhante e épico filme com direito a banda sonora. Colocava-me, não raras vezes, no lugar do professor, como se estivesse eu próprio a mostrar, de peito cheio, toda a grandiosidade da nossa história, não aos alunos, mas a qualquer estrangeiro desconhecedor do nosso país; e colocava-me no lugar do estrangeiro, tentando imaginar o que o mesmo sentiria.

Experimentar algo sem o sentir verdadeiramente sempre foi, para mim, uma real perda de tempo. Desde que me conheço, tenho consciência de encontrar toda uma sugestão espiritual em cada acto ou acontecimento... Como da vez em que descobri uma desconhecida cascata no meio da cidade onde cresci. A cascata encontrava-se por detrás das ruínas de um muro de pedra, com uma entrada, sem porta, por onde lentamente entrei, afastando as folhas das árvores que tapavam aquele mundo que visualizei de seguida, na minha cabeça, em câmara lenta, com toda a emoção que imagino que um ser humano teria ao encontrar as ruínas da cidade perdida da Atlântida.

Recordo, no mesmo contexto, a primeira vez que me apaixonei verdadeiramente. Cada pequeno momento é, hoje, visualizado em flashback pintado a sépia. Lembro-me de quando nos olhávamos, frente-a-frente na praia ao final da tarde. Eram olhares ingénuos de dois adolescentes que sorriam só pela emoção que a proximidade física proporcionava. Os nossos corpos ferviam em vontade de se tocar mas nem mesmo quando se tocavam a perversidade conseguia vencer a intensidade quase pura de momentos em que, de olhos fechados, as mãos, a pele e os lábios pintavam um cenário que só foi vencido em força e intensidade pelo momento em que terminámos aquela relação breve, intensa e quase platónica. Oito meses depois, estava cercado por uma tempestade no meio de uma praia deserta e prendia com toda a força da minha mão a pedra coração que ela me tinha oferecido no dia em que nos havíamos conhecido. Gritei, no auge do medo que me percorria o corpo, debaixo de uma tempestade que rompeu por cima de mim. Fiquei três horas longe de tudo e de todos, agarrado àquilo que de mais forte possuía... Os meus sentimentos materializados numa pedra que mantive na minha mão até conseguir sair de debaixo daquele temporal... A esperança de que aquela chuva, trovoadas e forte rebentação de ondas não me impedisse de voltar a vê-la uma vez mais e poder dizer que a amava como nunca havia amado ninguém, até então.

De frente para o retrato daquele miúdo de cinco anos, recordo toda uma panóplia de acontecimentos que nunca haverão de ter sido só simples acontecimentos. Porque quer recordar o passado, quer viver o presente, sem emoção, é tão somente existir. E nós temos capacidade para muito mais. Naturalmente que as pessoas mais racionais nunca compreenderão.

Afonso Arribança

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