segunda-feira, 28 de setembro de 2009


[Foto: Lisboa, Outubro de 2008]

É quando fecho a porta de casa, rodando a chave por três vezes, que me permito respirar fundo. Encostado à porta, vou escorregando até me sentar no chão, pousando de leve a cabeça sobre a porta que me separa do imenso mundo lá fora. Cansado, acabo por perceber que, inevitavelmente, a solidão me leva a um outro mundo, o meu. O cansaço leva-me a afastar-me do mundo real e sou incapaz de controlar o que do inconsciente foge para o consciente - e o nosso id é o nosso animal selvagem. Os pensamentos que freneticamente circulavam pela minha mente antes de entrar em casa dão lugar a outros menos ávidos, a outros que desconhecia já. Tinham morrido, ressuscitaram.
Fecho os olhos. Mas não resulta.
É então que apareces à minha frente. Levo as mãos à cara e ao cabelo. Puxo os cabelos e liberto sensações arrepiantes de medo. Apareces como um desejo, e a cada pensamento, mais esse desejo avulta. Os espasmos mentais chegam a atingir proporções que me levam a transpirar por em ti pensar. Já há tanto tempo que não te pensava assim... A ligeireza dos pensamentos que tinha trazido da rua é substituída pela presteza das emoções, que emergem em convulsões das profundezas do meu coração, dilacerando a barreira que imponho ao meu comportamento junto das outras pessoas.
"Renuncio ao amor, eu já nem te amo!"
Levo então a minha mão a ti, transformando-te em objecto ardente; acendo-te tal e qual vício que não me larga. Vou esfumando-te em pensamentos, provando sensações incomparáveis. A cada bafo expirado do meu peito, uma miragem, uma imagem de ti que me faz voar tão alto que chego a tocar nas estrelas. Expiro…
Que tu és o fogo que sempre arderá em mim já eu sabia. Mas tinha-te esquecido, tinhas morrido, desaparecido do meu coração. Tinha restado a preocupação de amigo, a promessa de nunca largar a tua mão, porque antes de tudo estava a amizade.
"Já não te amo."
És invisível, porque estavas presente na minha vida sem realmente estares, quase não existes e eu não te amo, embora agora me digam que é impossível ter-te esquecido. E esqueci-te, mesmo, acredita! Mas se assim é, então que desapareça esta imperiosa necessidade que tomou hoje conta de mim. Como que uma necessidade de vomitar algo que pensei não existir, que afinal apenas escondi debaixo do tapete da sala de estar, onde estivemos juntos, corpo a corpo, pela última vez. Fecho os olhos e inspiro bem fundo o fumo que me dás, fazendo-te arder em mil bocadinhos. Mato-te, matando-me, escrevendo no ar um bafo trágico da nossa história. E por fim, quando abro os olhos, expiro-te novamente, atingindo um orgasmo de inimagináveis proporções. Fecho os olhos. Mas eis que, finalmente, chega a hora... O cansaço era temporário e tudo passou. Tudo passou! Eu apago-te no cinzeiro - já o consigo fazer - e agora desapareceste, não existes mais, por hoje, por um bom tempo, e nem as memórias já têm força sobre mim; talvez tenham sido pensadas demais. Mas finalmente acabou. Foi apenas uma noite. Carência emocional, talvez. Nem sequer saudades.
"Eu já nem te amo."

11 comentários:

Alexandra disse...

Na minha opinião, as pessoas e os sentimentos nunca se esquecem, são apenas colocados nos seus devidos lugares e há dias em que o passado volta e abre feridas antigas, mas por pouco tempo. Depois volta tudo ao normal :)

Maravilhoso o texto, dos melhores que aqui tens e a música arrepia :D *

. disse...

"Cansado, acabo por perceber que, inevitavelmente, a solidão me leva a um outro mundo, o meu."

por vezes é mesmo o próprio passado que nos atraiçoa.

adorei o texto :')

Inesita Blog disse...

Este texto está fantástico!

Desculpa aparecer por aqui sem te conhecer, mas uma amiga minha "Liliana Correia" mostrou-me o blog e achei que tinhas imenso geito para fazer textos!

E este...tá lindo! Gostava que te pusesses como meu seguidor! Assim poderei vir ao teu blog para ler estes fantásticos textos que até me fazem arrepiar :)

Maria Francisca disse...

'talvez tenham sido pensadas demais', frase chave.
Meu Deus, do texto inteiro foi o que me esmagou a alma. Prometo.
Isso faz tanto sentido, mas para algumas pessoas passa tão despercebido.
Tens uma capacidade e força de amar que eu nem sei, nem consigo, nem quero descrever.
Tu sabes, e eu percebo.

Anónimo disse...

está lindo :)

Carolina disse...

Chorei a ler o teu texto, está lindoo. O que sentes transforma-se em palavras tão facilmente.

"Cansado, acabo por perceber que, inevitavelmente, a solidão me leva a um outro mundo, o meu." Amei.

Anónimo disse...

Partes do teu texto são mesmo bastante intensas, sinto em cada palavra que leio um sentimento que é genuíno a brotar lentamente...

Nem todos conseguem tocar alguém com os seus textos. Tu consegues.

[ rod ] ® disse...

o amor e suas conturbadas sensações... ama-se o que já nem temos... sofre-se pelo ter tido... abs meu caro.

Diogo Guerreiro disse...

Está qualquer coisa de muito bom... Parabéns!!!

eduarda disse...

não me canso de ler as tuas coisas! *

Mara disse...

É estranho e doloroso a dependência que criamos por alguém, alguém que não retribui. São drogas pesadas, difíceis de deixar. E, pior de tudo, às vezes não queremos que elas desapareçam, mesmo que nos matem cá por dentro.

Fantástico Afonso.
Adoro cada palvrinha tua*