quarta-feira, 5 de setembro de 2012


"A natureza fez o homem feliz e bom, mas a sociedade deprava-o e torna-o miserável."
Jean Jacques Rousseau


    “Deves ter os pés assentes na terra...” – dissera, enquanto continuava um discurso que se perdia no ar. Não ouvia. Antes, contemplava a diversidade de cores, formas e feitios de elementos que captavam, naquele momento, a minha atenção. Pude sorrir para a magnólia, de pétalas rosa, de tons esbranquiçados à mistura, e saber que ela é assim, porque sim. Porque não tem nem deve ser de outra forma. Como a relva. Conseguíeis imaginá-la, vós, de cores arroxeadas. Ou mesmo relva de cor preta? Redonda, ao invés de estreita?

    “Estás a ouvir-me? O teu problema é pensares que sabes tudo!” – continuava o seu discurso superegóico, pregando às moscas e ao vento. Também eu prosseguia...
O que não é – por não existir – incognoscível se assume; desejada, por outro lado, pois tende esta natureza humana a querer sempre o que não é, o que não existe, o que não tem. E as coisas podem mudar, as arestas podem limar-se e os limites alterarem a sua forma. Mas a essência, essa permanece. A essência, essa mater imutável do cosmos. Até as nuvens são parecidas connosco: nascem, assim, e não de outra maneira, crescem, transformam-se, mudando de forma, mantendo – ainda assim – o seu âmago, viajam através do mundo e da vida e... morrem. Quando a sua natureza medular se extingue, também o seu pulsar anímico se suprime, transformando-se, daí em diante, numa eterna e incolor inexistência. Nós, seres humanos, fazemos parte da natureza... Somos parte integrante de um mundo de gatos, cães, formigas, areia e vento, ferro, cobre e plantas, fogo e água, terra, ar... Nada é superior a nada e nada nem ninguém terá o direito de exigir mudança. Se ela tiver que vir, a seu tempo virá.

    “Tens que ser como os teus pais te dizem. Não lhes faltarás ao respeito. Tens que te vestir bem. Tens que fazer boa figura. Não deverás envergonhar a tua família. Tens que ser simpático e mostrar um sorriso. Tens que ser trabalhador. Não deverás ser preguiçoso. Tens que ser heterossexual, porque é teu dever constituir família, casar e ter filhos. Tens que ter um emprego respeitável. Ser advogado. Ou médico. Engenheiro, na pior das hipóteses. Tens que acreditar e temer a Deus. Não deverás questionar a sua existência.”

    A sociedade ergue-se ante a sucessão de impérios e culturas há milhões de anos, asfixiando a comum e singular existência, porque a suga e lhe impõe cores, formas e feitios que não são os seus. Não obstante, o facto é que a sociedade morreria se cedesse ao singular.

    “Não podes ser tímido, tens que falar. Não podes ser fraco, tens de ser forte. Não deverás esquecer-te de datas importantes. Nem deverás esquecer-te de presentear os aniversariantes ou os familiares, no natal. Não deverás fumar. Na verdade, não tens o direito a embriagar-te. Deverás ser um homem ou uma mulher de família e de valores. Não deverás divorciar-te, porque foste feito para o casamento e para a procriação. Não deverás trair, pois é pecado. Não deverás, de qualquer modo, pecar, seja que pecado for. Teme a Deus, pois ele poderá castigar-te. Uma vez realizado, o casamento deverá ser eterno. Não deverás pôr em causa a sapiência dos teus pais, tios e avós, porque certamente sabem mais que tu. Não podes gritar. Deverás manter a postura. Quatro palavras: Trabalho, Honra, Família e Procriação.”

    Tinha-se calado, por fim. "Gosto muito de ti e é por isso que quero que vejas que tens de mudar." Levantei-me e beijei-lhe a testa. Prezo quem acha que sabe amar. Ao fim e ao cabo, vale o esforço. Mas tinha que decidir... Tinha, agora, duas opções. Ou me deixava asfixiar, por amor proclamado num glorioso discurso de sapiência que reflectia anos de experiência e uma dedicação, respeito e amor tão grande de pai para filho; ou lhe virava, naquele momento, as costas, com toda a panóplia de responsabilidades que isso acarretaria. Bem sei o que, quem quer que esteja a ler isto, faria. E a prova está aí mesmo... Tudo continua a “ter que ser”, parecer para ser, porque é ser que não se sabe ser.

Afonso Costa

3 comentários:

Jessica disse...

Adoro ler os teus textos Afonso (: a forma como transmites as tuas opiniões e pensamentos através do jogo de frases tão fortes e bem construídas, faz de facto reflectir! "o facto é que a sociedade morreria se cedesse ao singular" muito real! Bom texto (:

Beijinhos,
Jessica

Anónimo disse...

"O que não é – por não existir – incognoscível se assume". Prendeste-me, não só com este trecho, mas com todo o registo, pela subtil complexidade e, acima de tudo, pela inexorável verdade.
Digo que adorei, honestamente.
*

Moonlight disse...

È mesmo assim Afonso....é mesmo assim!
" E a prova está aí mesmo... Tudo continua a “ter que ser”, parecer para ser, porque é ser que não se sabe ser."

Bj com luar