quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

"Ninguém pode ser escravo de sua identidade: quando surge uma possibilidade de mudança é preciso mudar."
Elliot Gould

Quando saí de casa já não chovia. O sol brilhava e arrancava do fundo da terra as raízes da esperança. Eram de se notar os sorrisos frescos, desabrochados naquela fresca manhã, como se se tratassem de flores rebentadas pelo raiar da primavera, escoltados pelo toque cálido do sol e pelos gélidos, porém delicados, braços do vento.
As pessoas passavam por mim, em sentido contrário ao meu, e eu podia ver-lhes a cara, o sorriso... Era como se, de repente, tudo tivesse mudado e, dos dias negros e molhados pelas nuvens grávidas de água, tivéssemos sido obsequiados pela bonança. Mas, na verdade, nada mudou. A mudança não é nem tem sido nada mais, nada menos, do que a repetição de acontecimentos que marcam e etiquetam os nossos modos de estar e de sentir o mundo. E, naquele momento, senti precisamente isto... Que a florista continua no mesmo sítio há anos, às mesmas horas, a vender as mesmas flores aos mesmos clientes e, quando não tem nada que fazer, a olhar de modo asqueroso as pessoas que pela loja passam e não entram. O senhor do café lá continua o seu negócio, desde que o comprou à anterior proprietária que lá estava, mantém o mesmo estilo de alimentação, os mesmos clientes e, apesar de não gostar dele porque acaba todas as palavras em 'inho', mantém a habitual relação de respeito para com esses mesmos clientes, o que é de considerar. Sempre que passo pela escola de condução, cumprimento os senhores instrutores. Sinto que estão lá há séculos. Talvez estejam lá mesmo desde a época dos dinossauros. É erróneo. Mas sinto-o. As pessoas são, para mal dos meus pecados ou para bem da minha pobre e ambiciosa alma, as mesmas, séculos após séculos. As chamadas telefónicas são as mesmas, e já nem atinjo o limite de horas. Os sítios onde vou resolveram armar-se em ditadores e obrigar-me a ir sempre para lá... Entre cá e lá, a minha vida passou a resumir-se a uma rotina ininterrupta, de ida e volta, de começo e fim, preto ou branco... Basta! E se eu quiser ir e não voltar? Ou partir para outro sítio? E se eu quiser começar e não acabar, ou mesmo começar outras coisas. Não as mesmas! E se eu preferir o cinzento ao invés do preto e do branco? Ou até o verde? É bonita a cor...
O que quero passar com isto é que é perfeitamente caricato declarar-me fruto de uma qualquer mutação genética que não me permita obter prazer na estabilidade - que o ser humano tanto procura. Mas esta é a verdade. Sou eu e todos os meus ego embrulhados nesta minh'alma que devaneiam em saciar-se lá para fora daquela porta, onde está a vida, na corda bamba da ambiciosa instabilidade que nos absorve em tentação de querer viver nos contornos do risco e da incerteza.
Amanhã vou embora e conto com uma despedida em grande, tal e qual estação do Verão quando se vai embora. Tenho uma história para escrever, o guião de um filme do qual irei manter segredo. Perdoem-me o mau jeito e a indelicadeza, mas amanhã vou partir para onde me der na gana e não sei se irei voltar.

Afonso Costa

7 comentários:

Mariana Neves disse...

tenho uma pena imensa de não poder vir diariamente ao teu blogue, a sério. É o melhor se sempre. Transmite-me uma compreensão imensa. Obrigado Afonso. E toda a banda sonora que o inclui é fantástica também, não fosse esta música uma das minhas preferidas. *

Anónimo disse...

A medida que o tempo passa, a tua escrita torna-se num vicio, cada palavra transmite uma sensção e um sentimento que nos toca cá dentro do pequeno e frágil coração mas que vale muito a pena porque são simplesmente incriveis tens uma maneira tão própria , tão mágica que nem sei.

Beijinho *

Moonlight disse...

Afonso,

Só nós temos o poder de mudar o rumo das coisas,partir e não voltar,começar e não acabar,variar o rumo da nossa vida.
Existe sempre o começo,um meio e um fim para tudo,mas nós é que podemos rumar de maneira diferente,sempre!

Bjo cheio luar

AF disse...

Boa sorte para o onde quer que estejas a partir.

Joel Roelles disse...

Gosto muito do escreve!!!

Anónimo disse...

tão lindo! :o
estou a seguir :) *

Daniela. disse...

O desequilíbrio actual, meu caro Afonso, é tão grande quanto o egoísmo e falta de escrúpulos desta sociedade. Não, por favor, não me perguntes se há solução porque não me apetece dizer-te que, infelizmente, se a há, ninguém a conhece!
Quanto ao teu texto, conseguiste descrever o meu estado de espírito com esta frase: «Perdoem-me o mau jeito e a indelicadeza, mas amanhã vou partir para onde me der na gana e não sei se irei voltar.» adoro, eu adoro ler os teus textos. *